quarta-feira, 24 de março de 2010

Cerejeiras em flor - 25/03/2010

As cerejeiras estavam floridas, quando Yu se deu conta de que era observada por Rudi.
Tinha-se passado o inverno rigoroso do Japão e, veja só, havia flores novamente, nos galhos da árvore que, há pouco, tinha-se a impressão de que era um fóssil morto e enregelado.
Algumas pessoas são exatamente assim: assoladas por rigorosos invernos assumem uma aparência triste, feia, de derrota mesmo, mas fazem como diz Cecília Meireles em um de seus textos: "aprendi com a primavera a deixar-me corta e voltar sempre inteira"...
Enfim. O que poderia significar essa postura, essa realidade. Por uma dessas vias, poderíamos entender que, assim fazemos, para testar a vida e a morte do que reside em nossos ciclos. Por outro lado, estaríamos praticando - porque somos obrigados - o recomeço.
Mas as cerejeiras parecem voltar cada vez mais lindas a cada ciclo, é como se a substância que lhe dá cor, forma, viço se potencializasse a cada nova morte...
10, 20, 30, 40 ... 100 anos de idade e estamos aqui ainda, acordando no meio da noite e amando o nosso amor, olhando a lua e imaginando algo bom, deitando e orando pra que tudo passe bem no dia seguinte.
Ah! Seria melhor se a máquina não nos tivesse invadido o espírito.
Estou certo de que veríamos o sorriso da entregadora de jornais, a devoção do rapaz na Avenida Paulista ao alimentar uma cadela abandonada, raquítica e machucada. Ele ajoelhou-se na calçada, abriu sua mochila e alimentou a cadela como se fosse uma criança.
E as cerejeiras?
Yu comunicava-se com sua falecida mãe, através da arte da dança Butô. Ensinou o mesmo a Rudi. Ele tambem tinha perdido o amor de sua vida e, desde então se travestia com as roupas dela, tentando recuperar tudo o que fora seu passado . Aprendeu com tal maestria que enlaçou-se com ela a ponto de, tambem, fundir-se com o Universo.
As cerejeiras foram, durante todo esse intento, o cenário, a moldura para o quadro que se pintava e que, agora, pertence ao mundo.
As relações humanas são assim: emolduradas de flores, sempre. A diferença está na dor. São flores dos anos, dos desenganos, dos sacrifícios todos. E tem a flor do erro, quando esperamos que o outro nos seja fiel e ele foi traidor.
Importa aqui Rudi e Yu que me ensinaram a dançar.
Importa o olhar desinteressado daquela mulher que me acompanhou em tudo e não me exigiu nada em troca, importa a experiência e a eloquência dessa outra mulher que diferencia o idioma vez ou outra, tenho por conta, também, os cabelos cheirosos e a atenção devotada desta negra linda, os exageros e receios de vida dele com seus olhos vermelhos, a amizade desmascarada e cuidadosa do outro que me beijou o rosto só no último dia, a vontade de estar próximo, aprendendo, de mais um dos três homens. São três as mulheres da minha defesa. São três os homens da minha redenção.
E é pleno o braço que me prende o choro, diante da beleza exposta pela sétima arte. No cinema, estava ele que me ama e que não consegue esconder isso, quando me fita os olhos.

No mais, são alimentos aos porcos. Cedo ou tarde haverão de ser defecados.

Adriano Gustavo di Andrade

domingo, 14 de março de 2010

Exercitando uma das condições a que fomos lançados, fui, sozinho, ao cinema. Assisti ao filme "Preciosa". Uma verdadeira história de todos nós que, em algum momento, somos massacrados por um sistema padronizador, em cuja política maior a exclusão é a palavra de ordem.

A condição a qual me refiro é a solidão.

Sim, tentamos fingir que não. Que há pessoas demais ao nosso redor, que os "amigos" estão a nossa espera e desejosos por nos encontrar, que a família, que o namorado, que fulano... etc.

O fato é que estamos sós.

E não me venha com o ideário cristão de que Deus está conosco, porque não é disso que estou falando. Se fosse falar disso, trataria logo de abrir uma incisão no peito do "crente", que amarga, em silêncio, a solidão que, também, demasiadamante sofre.

Sofre? Não entendo dessa forma. Entendo o ser e não o estar.

Somos sozinhos. E não há dor ou prazer que se divida, senão na superfície.

O filme é magnífico. Não há como contestar isso. Senti, mais uma vez, vergonha da minha condição de humano e por fazer parte dessa raça tão racional, que refinadamente transforma as suas vidas e a de terceiros em infernos propagados pelos inconsciente coletivo.

A menina "Preciosa", talvez tenha de precioso, unicamente o prazer que deu ao seu pai que a violentou desde a infância. Talvez tenha de preciosa a sua figura horrenda e gorda, a qual as pessoas se dirigem com sarcasmo e sadismo. Talvez, ainda, tenha de precioso o seu coração, pois, mesmo no meio de uma vida desgraçada, ainda teve o ímpeto de viver.

Preciosa nos encanta com o olhar já que sua voz foi roubada por fatores que ficam por nossa conta entender. E sem voz é como sem ar. Digo, é como inexistir sem a expressão do que comunica. Ela quase se torna um objeto desnecessário e obtuso. Seus olhos a salvam.

Eu, na sala do cinema quase vazia, refletia sobre estar só. Na metade da película, simplesmente dei minha mão à garota, irmanando-me em sua desgraça, abandonando as pretensões de tesão, de prazer, de tranquilidade e bem estar e retornei ao meu EU, cuja soma é feita dessa substância que recusamos, encerrando-a no fundo do aquário, mas que, queiramos ou não, nos resulta.

Adriano Gustavo di Andrade